terça-feira, 12 de novembro de 2013

Anselmo Borges: "Não é bom descer abaixo da razão"

Texto de Anselmo Borges no DN de sábado passado.


Aristóteles definiu o homem como "animal que tem logos" (razão, palavra). Daí vem a definição tradicional do homem como animal racional. É claro que a coisa é mais complexa, mas não há dúvida de que a razão é determinante. E embora nas igrejas raramente se ouça o apelo à inteligência e à razão, o Evangelho segundo São João começa dizendo que "no princípio era o Logos (o Verbo, a Palavra, a Razão) e tudo foi criado por ele". É por isso que o mundo é investigável e inteligível: foi criado pelo Logos. Isto significa também que o homem se deve orientar pela razão.

É evidente que o ser humano é um ser complexíssimo, com três cérebros e um só, com inconsciente e emoções. Mas determinante tem de ser a razão. Por conseguinte, não é bom descer abaixo da razão. Mas que tantas vezes se desce abaixo da razão - disso não há dúvida. Exemplos quotidianos um pouco a esmo. Não é segundo a razão, enquanto um banco se afundava a ponto de ter de fechar, haver salários milionários para alguns. Não está de acordo com a razão a austeridade não ser equitativa: continuam as mordomias, os privilégios, o número de multimilionários aumenta. Não é segundo a razão ter vivido na euforia gastadora irracional e esbanjar recursos à toa ou para vantagem apenas de alguns, espoliando o bem comum. Não é segundo a razão ter aberto instituições de ensino superior de modo cego. Não é por apelidar alguém de "pulha", "bandalho", "estupor", mesmo que o seja, que se tem mais razão.

Sempre considerei que a universidade deveria ser o lugar da razão, o Parlamento das razões. Ora, isso é incompatível com o que se vê frequentemente, nomeadamente, nas festas académicas dos estudantes. Porque não está de acordo com a razão puxar alguém pela trela ou pô-lo/pô-la de joelhos ou a rastejar ou a beber seja o que for por um penico ou a berrar histericamente ladainhas de palavrões ou a beber pura e simplesmente até cair de bêbedo e inconsciente ou a fazer aquilo que não seria decente aqui chamar... Uma coisa é o humor crítico, sempre saudável, porque é expressão de inteligência; outra é a descida à noite da irracionalidade e da estupidez.

Muito jovem, tinha a ideia de que a todos deveria ser dada a possibilidade de, pouco antes do fim da vida, escrever cinco ou seis linhas sobre o que lhes tinha sido dado ver da vida, um pensamento essencial sobre a existência. Essa seria a imensa biblioteca da humanidade. Ora, isso hoje seria quase possível através dos meios informáticos. A internet é um meio gigantesco ao serviço da comunicação e transmissão de saberes e informações. Mas quem algum dia passou os olhos pelos comentários que por lá viajam percebeu até onde podem descer a ignorância estúpida, o ódio vil, a malvadez. Lá estão aqueles que, escondidos cobardemente no anonimato e descendo abaixo da razão, vomitam o que têm: boçalidade, obscenidades, loucuras putrefactas. De tal modo, que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de Estrasburgo acaba de dar razão à justiça da Estónia, que condenou um site da internet por causa do conteúdo ofensivo dos comentários dos leitores e responsabiliza pela primeira vez os media online por tudo o que neles apareça, incluindo os comentários.

Quando tudo parece desabar, é preciso manter alguma serenidade e nunca descer abaixo da razão. A situação do País é de uma gravidade só comparável à de situações extremas ao longo da sua história. O mais dramático é as pessoas terem perdido a confiança e a esperança: não se sabe exactamente onde se está e, muito menos, para onde se vai. Vive-se numa perplexidade paralisante face a um futuro sem metas fiáveis e credíveis, sem horizontes. O pior. Neste contexto, não se entende que os primeiros responsáveis pela condução do País - governo e oposição - não se encontrem para, pondo de lado os interesses partidários, dialogar e encontrar um consenso mínimo de entendimento quanto ao que se quer e ainda se pode fazer pelo futuro.

Uma vida não reflectida, sem o uso da razão, sem ética, não é digna de ser vivida, disse Sócrates.

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